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Execuções de ofício

  • Foto do escritor: Sergio Braga
    Sergio Braga
  • 1 de out. de 2020
  • 7 min de leitura

A (i)legalidade das “execuções de ofício” promovidas nos juizados especiais e o instituto da correição parcial.


Sérgio Jacob Braga[1]

Vivian Azevedo Rodrigues[2]



I – INTRODUÇÃO


O presente artigo visa à análise acerca da (i)legalidade da chamada “execução de ofício” adotada, principalmente, no âmbito dos Juizados Especiais, fundada nos Princípios delimitados pela norma do artigo 2º, da Lei 9.099/95, que dispõe sobre aquele órgão jurisdicional, bem como discorrer sobre os instrumentos de controle e revisão do referido ato, através do sucedâneo recursal da Correição Parcial, previstos em leis locais de organização judiciária e regimentos internos dos tribunais estaduais.


II – DESENVOLVIMENTO


O ordenamento jurídico brasileiro possui como um de seus sustentáculos o princípio do devido processo legal, inserto na norma do art. 5º, inciso LIV, da Constituição da República, segundo o qual ninguém poderá ser privado de seus direitos, sem a devida observância das formalidades e exigências previstas em lei.


Com efeito, trata-se de princípio norteador – e convergente – de todos os demais princípios invólucros da jurisdição, dentre os quais, há de se destacar o princípio dispositivo, da imparcialidade e da inércia, cujo cotejo revela-se indispensável à compreensão do estudo ora proposto.


Conforme se sabe, à função jurisdicional, exercida por magistrados togados, cabe a aplicação do direito à uma situação concreta (juris dicere) e, justamente, por esta razão, sua atuação está adstrita à provocação dos sujeitos da situação jurídica controvertida deduzida em juízo.


Dentre as principais características da função estatal encontram-se a imparcialidade e a inércia, as quais asseguram às partes o exercício da atividade jurisdicional, pelo magistrado, de maneira desprovida de qualquer interesse na relação jurídica material litigiosa e, igualmente, limitada à provocação das partes e do objeto apresentado na deflagração da lide.


Decorre das características citadas a possibilidade de compreensão do processo sob a ótica do princípio dispositivo. Com efeito, pelo princípio do dispositivo o juiz mantem-se equidistante, incumbindo às partes a condução e instrução do processo, facultando-lhes, caso seja de seu interesse, inclusive, renunciar, desistir ou reconhecer o pedido inicial.


O exercício da função jurisdicional no âmbito dos Juizados Especiais, com espeques no princípio da informalidade, tem, por vezes, ultrapassado os limites da imparcialidade e inércia, ocasionando situações como a que ora se verifica.


Conforme já exposto, compete às partes impulsionar a tramitação processual, podendo, inclusive, quedarem-se inertes e, se for o caso, suportar as consequências legais de seus atos[3]. A inércia das partes não autoriza o magistrado a impulsionar o feito ao seu alvedrio.


A fase do cumprimento de sentença inicia-se com a intimação da parte vencidaacerca do trânsito em julgado da decisão que a condenou ao pagamento da quantia certa ou fixada em liquidação, devendo o sucumbente cumprir espontaneamente a obrigação em até 15 (quinze) dias. Caso assim não o faça, cabe ao Exequente requerer o cumprimento de sentença, com o acréscimo da multa prevista no art. 475-J, do Código de Processo Civil.


Dispõe a norma do referido artigo:


“Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação”.


Da leitura do dispositivo retrotranscrito, resta claro que não efetuado o pagamento da condenação, no tempo e modo devidos, cabe ao Credor requerer o cumprimento da obrigação, acostando aos autos planilha atualizada de seu crédito, e não ao magistrado, atuando de ofício, determinar quaisquer medidas de constrição de bens do devedor – mormente o bloqueio judicial nas contas e aplicações do devedor, sob pena de ofensa aos princípios do devido processo legal constitucional, da inércia, da imparcialidade e do dispositivo[4].


Todavia, na realidade dos Juizados Especiais, a observância das leis, preceitos e garantias legais pelos magistrados é por vezes mitigada, cabendo às partes impugnar, por meio do recurso, as decisões proferidas exofficiono processo, a fim de possibilitar-lhe a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou integração.


Os recursos passíveis de interposição encontram-se previstos na norma do art. 496, do CPC, e constituem rol numerusclausus, não podendo ser ampliado nem pelos Tribunais Estaduais, sob pena de violação da norma prescrita no artigo 22, inciso I, da CR, o qual estabelece a competência privativa da União para legislar sobre direito processual.


Visando, entretanto, possibilitar a insurgência contra decisões decorrentes de “error in procedendo”[5],não passíveis de impugnação por Agravo, o que ocorre em relação às decisões interlocutórias proferidas nos Juizados Especiais[6],os Tribunais Estaduais têm criado, através de seus Regimentos Internos, o sucedâneo recursal da correição parcial, também conhecido como reclamação.


No estado de Minas Gerais, o sucedâneo encontra-se previsto nas normas dos art. 24, IX, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça e do art. 11, inciso XIII, do Regimento interno do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, os quais atribuem a competênciapara proceder ao julgamentoda Correição parcial ao próprio Tribunal Estadual, tal qual ocorre nas unidades federativas doRio Grande do Sul (art. 195 da Lei Nº 7.356/80), Rio de Janeiro (Art. 210 e ss. do Regimento Interno do Tribunal de Justiça) e Distrito Federal e Territórios (Arts. 187 e ss. do Regimento Interno do Tribunal de Justiça).


Conforme preceitua os citados artigos, o processamento da correição parcial será admissível para emendar ou corrigir erros e abusos, quando não haja recurso ordinário cabível, e obedecerá a forma e procedimento do recurso do Agravo de Instrumento.


Outrossim, corrobora e elucida a doutrina[7] como pressupostos de admissibilidade para cabimento da correção parcial: “a) existência de um ato ou despacho, que contenha erro ou abuso, capaz de tumultuar a marcha normal do processo; b) o dano, ou a possibilidade de dano irreparável, paraa parte; c) inexistência de recurso para sanar error in procedendo”.

A ilegalidade da decisão prolatada pelo magistrado, no âmbito dos Juizados Especiais, ao determinar, de ofício, a constrição de bens do devedor através do bloqueio judicial nas contas e aplicações do devedor ou outros sistemas conveniados, quando tal iniciativa cabia, única e exclusivamente ao credor, pode e deve ser objeto do sucedâneo recursal da correição parcial, já amplamente aceito na jurisprudência pátria.


Neste sentido, manifestou-se o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:


“CORREIÇÃO PARCIAL - APLICAÇÃO DA FORMA DO AGRAVO - ART. 24, INC. IX, DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - INTERPOSIÇÃO FORA DO PRAZO LEGAL - MANIFESTA INADMISSIBILIDADE. 1 - A interposição da correição parcial após o transcurso do prazo de 10 (dez) dias obsta o processamento da medida, a qual deve observar a forma do agravo de instrumento. Segundo a exegese do art. 522, inc. I, do CPC, c/c art. 24, inc. IX, do RITJMG.2 - Recurso não provido” (TJMG, autos nº 0423011- 10.2010.8.13.0000, Des. Edgard Penna Amorim, D.J 04/10/10, public. 10/12/10).

“CORREIÇÃO PARCIAL - MATÉRIA NÃO JURISDICIONAL - DECISÃO QUE NÃO DESAFIA RECURSO - 'ERROR IN PROCEDENDO' - APRESENTAÇÃO DE ACORDO ENTRE AS PARTES - FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - POSSIBILIDADE - ERRO/EQUÍVOCO DO JULGADOR AO NÃO RECEBER PETIÇÃO E NÃO ADMITIR A CONCILIAÇÃO NESTA FASE. Evidenciando-se dos autos que a decisão proferida em procedimento nos Juizados Especiais não é passível de recurso e revela erro/equívoco do julgador ao inadmitir a possibilidade de conciliação entre as partes, após a sentença, constitui a correção parcial o meio próprio para afastar tal erro; sendo a conciliação a finalidade primordial dos Juizados Especiais”. (TJMG, autos nº 1.0000.08.474069-5/000(1), Des. Maria Elza, D.J 01/12/2008, public. 13/03/09).


Portanto, estreme de dúvidas o cabimento do instituto jurídico da correição parcial aos casos apontados em que haja erro de procedimento.


Por derradeiro, no tocante aos efeitos da decisão que acolhe os argumentos do sucedâneo recursal, leciona Araken de Assis[8] que seriam três, quais sejam, (i) retomada da marcha do processo, (ii) aplicação da medida disciplinar ao magistrado e (iii) emissão de pronunciamento a favor da parte, sendo certo que, na prática, este último sobressai aos demais.


III – CONCLUSÃO Por todo o exposto, considerando a clara ofensa aos princípios do devido processo legal constitucional, da inércia, da imparcialidade e do dispositivo, bem como a inexistência de recurso cabível a ser interposto em face da decisão interlocutória que determina a constrição de bens do devedor, sem o requerimento do credor e, por conseguinte, o tumulto processual ocasionado, conclui-se pelo cabimento do sucedâneo recursal da correição parcial, a fim de ver anulada referida decisão.

__________________________________________________________________________________ [1] Sérgio Jacob Braga é advogado-gestor do Núcleo de Assuntos e Processos Estratégicos da banca Ferreira e Chagas Advogados. Mestre em Direito Público. Especialista em Direito Processual. Professor de graduação e pós-graduação. Delegado de Prerrogativas da OAB/MG. [2] Vivian Azevedo Rodrigues é advogada do Núcleo de Assuntos e Processos Estratégicos da banca Ferreira e Chagas Advogados. Especialista em Direito Processual pelo IEC/Pucminas.

[3] Vide arts. 267, inciso II e III do Código de Processo Civil. [4] Ressalte-se que, ao contrário do que se verifica em conflitos de regras, sanadas pela hierarquia, especialidade e cronologia, no caso de colisão de princípios um não anula o outro, devendo ambos serem aplicados ao caso concreto. Portanto, a previsão legal dos princípios norteadores da Lei dos Juizados Especiais não tem o condão de afastar a incidência dos demais princípios.

[5] “Chama-se de error in procedendo o vício de atividade, que revela um defeito da decisão, apto a invalidá-la. (...) no recurso por error in procedendo, discute-se a perfeição formal da decisão como ato jurídico: discute-se, enfim, a sua validade (pouco importa o acerto o acerto ou equívoco da decisão)” JUNIOR, Fredie Didier, Curso de Direito Processual Civil, vol. 3, 8ª edição, editora Jus Podivm, p. 72 [6] Nas causas que, sob procedimento sumaríssimo, tramitam perante os Juizados Especiais, previstos no art. 98, I, da Constituição Federal, são cabíveis somente embargos de declaração e, da sentença, recurso inominado ‘para o próprio juizado’ (...) As decisões interlocutórias, que pela própria estrutura do rito sumaríssimo muito poucas hão de ser, são irrecorríveis. Em consequência, a matéria versada em decisão interlocutória ‘não restará coberta pela preclusão, podendo ser reiterada na impugnação da sentença, com o escopo de sua reapreciação pelo órgão colegiado ad quem’ (TUCCI, Rogério Lauria, Manual do Juizado Especial de Pequenas Causas, Editora Saraiva, 1985, p. 247)."

[7] JUNIOR, Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, Vol. I, 48ª edição, editora forense, p. 640.

[8]ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 3ª ed. rev. atual. e ampl. de acordo com a as leis 12.016/2009 e 12.322/2010 – São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2011.



IV – BIBLIOGRAFIA


1. ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 3ª ed. rev. atual. eampl. de acordo com a as leis 12.016/2009 e 12.322/2010 – São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2011.

2. BRASIL. Código Civil. Código de Processo Civil. Constituição Federal. Organização dos textos por Yussef Said Cahali.

3. ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

4. ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Regimento Interno do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

5. JUNIOR, Fredie Didier, Curso de Direito Processual Civil, vol. 3, 8ª edição, editora Jus Podivm

6. JUNIOR, Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, Vol. I, 48ª edição, editora forense

7. TJMG, autos nº 0423011-10.2010.8.13.0000, Des. Edgard Penna Amorim, D.J 04/10/10, public. 10/12/10

8. TJMG, autos nº 1.0000.08.474069-5/000(1), Des. Maria Elza, D.J 01/12/2008, public. 13/03/09

9. TUCCI, Rogério Lauria, Manual do Juizado Especial de Pequenas Causas, Editora Saraiva, 1985


Publicado na Revista Prática Jurídica Consulex – Edição nº 149 – páginas 54-56 – 2014 – ISSN 1677-1788

 
 
 

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