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Inconstitucionalidades do CTB (4)

  • Foto do escritor: Sergio Braga
    Sergio Braga
  • 3 de out. de 2020
  • 9 min de leitura

Inconstitucionalidade formal e a quem compete multar


1. INTRODUÇÃO


Finalmente chegamos a última etapa de nosso estudo. Demonstramos serem os funcionários das sociedades de economia mista municipais incompetentes para autuarem o motorista, ante a ausência de fé pública de seus atos. Comprovamos, também, serem impassíveis de convalidação os atos desses agentes, pois os dirigentes máximos daquelas empresas também são incapazes para exercer o poder de polícia.

Sendo a multa um ato administrativo cujo requisito essencial é ser emitida por agente competente, por dedução lógica todas as multas lavradas nas cidades de Belo Horizonte, Santos, Fortaleza e Niterói são eivadas de nulidade absoluta.


Ora, se tais atos são nulos, por conseqüência, inválidos, todos os valores pagos pelos condutores de veículos dessas cidades devem ser restituídos, sob pena de enriquecimento ilícito desses Municípios.

Plácido e Silva ensina que “Enriquecimento ilícito ou sem causa é o que se promove empobrecendo injustamente outrem, sem qualquer razão jurídica, isto é, sem ser fundado numa operação jurídica considerada lícita ou uma disposição legal.

Estamos seguros em afirmar que os Municípios citados, além de outros que constituíram entidades executivas para policiar o trânsito, devem restituir todos os valores arrecadados oriundos de atos administrativos inválidos.

Havendo omissão desses entes na devolução do dinheiro, os condutores devem recorrer ao Judiciário e propor as ações indicadas para serem ressarcidos dos prejuízos de um empobrecimento injustificado. Tal procedimento refere-se a atos passados.

Para situações futuras, em que o motorista de veículo seja constrangido indevidamente por um agente incompetente para autuá-lo, Cássio Honorato ensina os meios de defesa:


Um primeiro procedimento (considerado mais cauteloso) consiste na busca de meios jurisdicionais de defesa dos direitos fundamentais (...) mandado de segurança e (...) habeas corpus (...)

Há um segundo procedimento (mais enérgico e eficaz), em que a vítima de constrangimento lançaria mão, no momento da abordagem, da garantia de Resistência à Opressão. (HONORATO, 2005)


Por fim, ensina o autor, que a vítima de tal constrangimento pode ir além. Sendo os atos daqueles agentes manifestamente ilegais, que traduzem verdadeira usurpação de função pública, poderiam os condutores abordados, com fundamento no art. 301 do Código de Processo Penal, prender em flagrante delito os agentes de trânsito, bem como eventuais co-autores por constrangimento ilegal e abuso de autoridade. (HONORATO, 2005)


2. A QUEM COMPETE POLICIAR O TRÂNSITO


Indicamos ao longo desse estudo que os Municípios e as sociedades de economia mista por eles criadas são incompetentes para policiar o trânsito. Fundamentamos, de forma ampla, nossos argumentos, abordando sob a ótica de diversos ramos do direito.

Mas, se aos Municípios, suas entidades executivas e seus empregados públicos não cabe policiar o trânsito, a quem compete tal função?

Dissemos, na primeira parte de nosso estudo, que inicialmente cabe ao ente que legisla, policiar. Observamos que, em princípio, compete à União policiar o trânsito. Adiantamos que a Constituição delegou tal competência a outro ente, qual seja, os Estados-membros, e frisamos que o trânsito é uma questão de ordem pública, de valor nacional, que integra a segurança pública.

Esse pensamento encontra-se em harmonia com o que reza a norma do art. 144, caput, inciso V e § 5o:


Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

(...)

V – Polícias militares e corpo de bombeiros militares.

(...)

§ 5o. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (...)


Logo, compete também às polícias militares estaduais, a fiscalização e policiamento do trânsito.


Trata-se, em verdade, de função exclusiva conferida pela Constituição às Polícias Militares, com exclusão de todos os demais órgãos (sejam da União, dos Estados ou dos Municípios). (HONORATO, 2005)


A legislação infraconstitucional corrobora esse entendimento. Senão vejamos.

Diógenes Gasparini cita o DL 667/69 e o Decreto 88.777/83 e estuda a compatibilidade de ambos com o CTB. (GASPARINI, 1997)

O DL 667/69, com alterações efetuadas pelo DL 1.406/75 e pelo DL 2.010/83, que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, e dá outras providências, rege que:


Art. 3º Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições:

a) executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas e os casos estabelecidos em legislação específica, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridades policiais competentes, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos;

O Decreto 88.777/83, que aprovou o regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, estabelece:


Art. 2º. Para efeito do Decreto-lei nº 667, de 02 de julho de 1969 modificado pelo Decreto-lei nº 1.406, de 24 de junho de 1975, e pelo Decreto-lei nº 2.010, de 12 de janeiro de 1983, e deste Regulamento, são estabelecidos os seguintes conceitos:

(...)

21. Ordem Pública - Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.

(...)

27. Policiamento Ostensivo - Ação policial, exclusiva das Polícias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública.

(...)

São tipos desse policiamento, a cargo das Polícias Militares ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, os seguintes:

(...)

- de trânsito;


Ao comparar as legislações, conclui o ilustre doutrinador


De início, anote-se que não existiu revogação expressa, e nem há qualquer elemento que nos permita concluir que tenha havido revogação tácita por incompatibilidade entre os diplomas analisados. Ao contrário, trata-se do encontro entre norma geral sancionada posteriormente e as normas especiais. (GASPARINI, 1997)


E justifica:


ilegalidade e respeitando-se a sua limitação, imposta pela norma especial, é fenômeno que está disciplinado pela Lei de Introdução ao Código Civil, no § 2º do artigo 2º:

Art. 2o. (...)

(...)

§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.


O Código de Trânsito Brasileiro, pela sua natureza, é lei nova de caráter geral sobre trânsito, abordando-o em todos os seus aspectos, enquanto os dispositivos legais, que versam sobre as competências das Polícias Militares, quando tratam de trânsito, fazem-no de forma especial, vez que se destinam a disciplinar, concomitantemente, outros assuntos. Por isso, ao abordar sobre disposições gerais ou adentrando as disposições especiais, ao lado das já existentes no Ordenamento Jurídico, a lei posterior não revoga a lei anterior naquilo que é de sua especificidade.


Assim, a lei posterior em matéria de competência das Polícias Militares para exercerem o policiamento de trânsito (CTB) confirmou, simplesmente, toda a legislação preexistente.

Portanto, seja pelo texto Constitucional, seja pela legislação infraconstitucional, verifica-se que, diante da impossibilidade da União em exercer tal mister, compete às Polícias Militares estaduais o efetivo policiamento do trânsito.


3. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DO CTB


Abordamos as inconstitucionalidades materiais do CTB. Citamos a impropriedade do legislador em aprovar uma lei ordinária, quando para certos temas a CF exige lei complementar.

Além disso, o CTB sofreu outra inconstitucionalidade ao longo de sua tramitação no Congresso Nacional.

Cássio Honorato, citando Clèmerson Merlin Clève, leciona que uma lei é formalmente inconstitucional quando elaborada por órgão incompetente (inconstitucionalidade orgânica) ou quando segue procedimento diverso daquele fixado na Constituição (inconstitucionalidade formal propriamente dita). “Pode, então, a inconstitucionalidade formal resultar de vício de elaboração ou de incompetência”. (HONORATO, 2005, p.34)

E é justamente no vício de elaboração que o CTB esbarra. O Projeto de Código que originou a Lei 9.503/97 chegou ao Congresso Nacional com a Exposição de Motivos 45/93 e a Mensagem 205/93. A mensagem foi recebida em 24/05/1993 para tramitar nos termos do art. 205 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, como Projeto de Código.

O referido art. 205 situa-se no Capítulo III, que trata dos Projetos de Código, sendo o referido regimento aprovado pela Resolução 17/89, estabelecendo que


Art 205. Recebido o projeto de código ou apresentado à mesa, o Presidente comunicará o fato ao Plenário e determinará a sua inclusão na Ordem do Dia da sessão seguinte, sendo publicado e distribuído em avulsos.


Ocorre que, a mensagem 205/93 “foi encaminhada pela Presidência para uma Comissão Especial, com apoio no inciso II do art. 34 do Regimento, suprindo-se o exame do plenário” (HONORATO, 2004, p. 34)

Sendo esta Comissão dotada de poder terminativo, o 3o relatório por ela elaborado foi considerado conclusivo, sem recurso previsto no art. 132, § 2o, do Regimento.


Art 132. (...)

§ 2o Não se dispensará a competência do Plenário para discutir e votar, globalmente ou em parte, projeto de lei apreciado conclusivamente pelas Comissões se, no prazo de cinco sessões da publicação do respectivo anúncio no Diário da Câmara dos Deputados e no avulso da Ordem do Dia, houver recurso nesse sentido de um décimo dos membros da Casa, apresentado em sessão e provido por decisão do Plenário da Câmara.


O projeto foi remetido ao Senado, em 04/05/1994, para o exame das 256 proposições.

Cássio Mattos Honorato, citando Geraldo de Faria Lemos Pinheiro, explica que o relator anotou o invulgar procedimento legislativo adotado pela Câmara dos Deputados e temeroso de que a tramitação fosse declarada nula pelo Poder Judiciário, dado o vício de forma, submeteu o caso à Consultoria do Senado. (HONORATO, 2004, p. 34)

A Consultoria do Senado, por meio da Nota Técnica 117/66, concluiu:


“Assim, do exposto, concluímos que a questão da admissão de proposição para tramitar como projeto de Código é matéria inscrita no âmbito da interpretação do regimento interno da Casa do Congresso Nacional. Por outro lado, não é possível uma casa restituir à outra matéria legislativa lá votada, em razão de divergência de interpretação do respectivo regimento interno”.


Demonstração do incômodo causado pelo procedimento adotado pela Câmara dos Deputados consta do relatório aprovado pelo Senado:


Buscamos a melhor doutrina, consultamos a literatura especializada e ouvimos os mais experientes. Baseamos o nosso trabalho nas informações de especialistas de diversas áreas do conhecimento e contamos com a providencial e prestimosa colaboração de nossos pares nesta Comissão.


De volta do Senado, o projeto passou a merecer o reexame da Câmara, tendo sido aprovada para promulgação.

O Parecer nº 400, publicado no Diário do Senado Federal, nº 123, Suplemento, de 09 de julho de 1996, demonstra a preocupação:


Reiteramos, nesta oportunidade, a convicção de que a tramitação da matéria acha-se eivada de vício de forma insanável, por nós apontado no parecer sobre a preliminar, o que retira dos ombros desta relatoria qualquer responsabilidade sobre eventuais defeitos que venham a recair sobre a vigência e eficácia da lei ora em elaboração, por conta do Judiciário.


Pelo exposto, na lição de Geraldo de Faria Lemos Pinheiro, tendo sido suprimida uma das fases do procedimento legislativo descrito na norma do art. 205 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, conclui-se que o procedimento adotado pela Câmara eivou de nulidade insanável o Código de Trânsito Brasileiro, havendo, portanto, fundamento jurídico relevante para que sua inconstitucionalidade formal seja declarada.

4. CONCLUSÃO


Ao longo dos quatro artigos escritos demonstramos as inconstitucionalidades materiais do Código de Trânsito Brasileiro, que completa dez anos de vigência.

Demonstramos que se a Constituição Federal não delegou ao Município o poder de polícia para fiscalizar o trânsito, então as sociedades de economia mista constituídas pelos Municípios para fiscalizar o trânsito não podem multar condutores de veículos.

Se tais empresas de capital misto constituídas pelo Município para fiscalizar o trânsito não podem multar condutores de veículos, então os funcionários daquelas são incompetentes para autuarem os motoristas.

Em seqüência lógica, se os funcionários daquelas são incompetentes para autuarem os motoristas, então os atos administrativos de lavrar as autuações são inválidos.

E, se os atos administrativos de lavrar as autuações são inválidos, então os valores pagos devem ser restituídos, sob pena de enriquecimento ilícito por parte do Estado.

Para não ficarmos restritos à crítica, reproduzimos o estudo do professor Diógenes Gasparini, mostrando a quem compete policiar o trânsito.

Por fim, citamos o professor Cássio Mattos Honorato e Geraldo de Faria Lemos Pinheiro, cujos estudos demonstram a inconstitucionalidade formal do Código de Trânsito Brasileiro.

Não nos surpreende que estamos, há dez anos, sob a égide de um diploma formal e materialmente inconstitucional, haja vista a atecnia do legislador derivado já ter sido demonstrada em outras normas.

Por fim, cumpre-nos ressaltar que tais inconstitucionalidades ainda não foram declaradas pela Corte Suprema, contudo algumas ações contestando a legitimidade dos empregados dessas empresas já foram julgadas procedentes pelo Supremo Tribunal Federal, fundamentadas na indelegabilidade do poder de polícia a um ente privado.


5. BIBLIOGRAFIA


1. BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro (1997). Brasília: Senado, 1997.

2. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

3. BRASIL. Decreto n. 88.777, de 30 de setembro de 1983. Aprova o regulamento para as Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares. Brasília: Presidência, 1983.

4. BRASIL. Decreto-lei n. 667 de 2 de julho de 1969. Reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasília: Presidência, 1969.

5. BRASIL. Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Aprovado pela Resolução n. º 17 de 1989, da Câmara dos Deputados, publicada no Suplemento ao Diário do Congresso Nacional-I, de 22 set. 1989, p. 3). (Disponível em <http://www.camara.gov.br/legislacao/regimentointerno.html> Acesso em: 20 out. 2005).

6. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8a edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2003.

7. GASPARINI, Diógenes. Novo Código de Trânsito: os Municípios e o Policiamento. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, n. 47/48, Janeiro/Dezembro. 1997.

8. HONORATO, Cássio Mattos. Resistência à Opressão: Garantia implícita na Constituição de 1988. 2005.

9. HONORATO, Cássio Mattos. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro: Análise das Penalidades e das Medidas Administrativas cominadas na Lei 9.503/97. Campinas/SP. Millennium Editora. 2004.

10. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 19a edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2002.


6. SOBRE O AUTOR


SÉRGIO JACOB BRAGA é advogado, graduado pela PUC-Minas/Betim e pós-graduado em Direito Processual pela UNAMA/LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes; mestrando em Direito Público Internacional pela PUC/Minas; membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativa da OAB/MG.

Publicado em 03 de novembro de 2008 – ISSN 1980-4288 – Jornal Jurid

 
 
 

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